O título deste artigo não expressa apenas uma opinião sobre os benefícios da ZFM, mas uma determinação contida na Constituição Federal, a qual deve ser observada e aplicada face à recente edição do Decreto n° 10.979/2022.
O Estado Democrático de Direito em que todos nós, brasileiros, vivemos e convivemos é regido pela Constituição Federal de 1988.
Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Foi o que disse o saudoso presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, Ulysses Guimarães, que inaugurou a nova ordem democrática, a 5 de outubro de 1988.
Cada palavra contida na Constituição Federal diz muito. Por exemplo, logo em seu primeiro artigo, descobrimos que esse Estado, instituído em 1988, é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
O desenvolvimento, portanto, constitui objetivo indissociável do Estado Democrático de Direito e não somente foi programado pela Constituição hoje vigente, mas instrumentalizado por ela. Seu artigo 21, por exemplo, impõe à União o mister de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social.
A redução das desigualdades regionais e sociais, por sua vez, constitui um dos princípios da ordem econômica desse Estado Democrático de Direito. É o que dispõe o artigo 170, inciso VII, da Constituição Federal.
E justamente foi nesse contexto que a Constituição Federal de 1988, expressamente, manteve a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de 25 anos, posteriormente acrescido em cinco décadas, assim valendo até o ano de 2073.
A ZFM foi criada em 1967 com o fim de compensar os fatores locais pouco atrativos e a grande distância da região amazônica dos centros consumidores, com a missão de integrar a Amazônia Ocidental às economias das outras regiões do país.
Ciente de que a região amazônica não dispunha dos fatores estruturais levados em consideração pelos agentes econômicos privados no momento da escolha do local dos seus investimentos produtivos, o Poder Público criou a Zona Franca de Manaus, com o nítido fim de compensar a carência desses fatores, direcionando investidores para essa localidade e exigindo, como contrapartida, fomento material, criação e manutenção de empregos e movimentação da economia, com a fixação e circulação do produto financeiro dos incentivos fiscais nessa região menos desenvolvida e privilegiada.
É evidente, portanto, que o modelo da ZFM está em plena sintonia com os objetivos instituídos pela nova ordem democrática de 1988. Sua manutenção foi um compromisso firmado por toda a sociedade, a partir da promulgação da Constituição Federal.
Por isso, reduzir os incentivos tributários da ZFM significa, sim, descumprir e afrontar o texto constitucional.
Ocorre que o Poder Público, de tempos em tempos, parece esquecer ou ignorar o que foi colocado acima. Nas últimas décadas, abundam exemplos de tentativas, muitas das quais malsucedidas (graças à provocação do Poder Judiciário), de mitigação dos incentivos da ZFM.
Talvez, o exemplo mais emblemático nesse sentido tenha sido a edição da Medida Provisória nº 2.037-24, de 23 de novembro de 2000, cujo texto previu isenção da contribuição ao PIS incidente sobre as receitas de exportação e deixou de estender esse mesmo benefício às receitas de vendas para a ZFM (equiparadas às exportações para todos os efeitos fiscais).
O Estado do Amazonas ofereceu ação direita de inconstitucionalidade contra essa MP ao Supremo Tribunal Federal que, por sua vez, suspendeu a eficácia da norma naquilo que prejudicava a ZFM.
Consta da ementa desse julgado o seguinte:
ZONA FRANCA DE MANAUS – PRESERVAÇÃO CONSTITUCIONAL. Configuram-se a relevância e o risco de manter-se com plena eficácia o diploma atacado se este, por via direta ou indireta, implica a mitigação da norma inserta no artigo 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988: Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição. Parágrafo único. Somente por lei federal podem ser modificados os critérios que disciplinaram ou venham a disciplinar a aprovação dos projetos na Zona Franca de Manaus. Suspensão de dispositivos da Medida Provisória nº 2.037-24, de novembro de 2000. (ADI 2348 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2000, DJ 07-11-2003 PP-00082 EMENT VOL-02131-02 PP-00266)
Ao julgar o pedido de liminar formulado nessa ADI, o STF (a maioria dos seus Ministros) evidenciou que há “conflito, com a Carta da República, de toda e qualquer norma que […] restrinja, reduza ou elimine favores fiscais existentes” relativos à ZFM.
Esse mesmo entendimento pode ser observado na ADI n° 310.1, de relatoria original do Ministro Sepulveda Pertence, em cujo julgamento o STF reconheceu a inconstitucionalidade de normas que retiravam, da ZFM, benefícios fiscais do ICMS anteriores à Constituição de 1988.
Diante disso, parece bem claro que o recém editado Decreto n° 10.979, de 25 de fevereiro de 2022, o qual reduziu em 25% as alíquotas do IPI, é inconstitucional por reduzir benefícios tributários relativos à ZFM.
A redução das alíquotas do IPI, antes de beneficiar empresas instaladas em todas as regiões do Brasil, prejudica as indústrias estabelecidas na ZFM, retirando-lhe competitividade. Prejudica, portanto, o desenvolvimento da região amazônica.
Os objetivos buscados com a criação do modelo ZFM e com sua manutenção, expressamente assegurada pela Constituição Federal, são afrontados quando reduzidos, ainda que de forma indireta, os incentivos tributários oferecidos para as empresas instaladas na região.
É interessante notar, nesse sentido, que o próprio Poder Público confessa que a norma recém editada tem o efeito de mitigar os incentivos tributários da ZFM, ao dizer que não fossem as isenções concedidas às empresas ali instaladas, o corte no IPI poderia ter sido de até 50%: “não fosse a Zona Franca, a redução de IPI seria maior, certamente de 50%. Como respeitamos a Amazônia, foi só 25%”, disse o Ministro da Economia, Paulo Guedes.
Ocorre que a Constituição Federal, de acordo com a interpretação que lhe é dada pelo STF, impede a redução de benefícios relativos à ZFM até o ano de 2073, não estabelecendo qualquer tipo de gradação para que isso ocorra. Assim, se o corte do IPI em 50% prejudicaria as empresas da ZFM, sua redução em 25% igualmente provoca esse mesmo tipo de efeito nocivo, mas em proporções menores.
Diante disso, é fundamental que o Governo do Amazonas, as empresas da ZFM e todas as entidades de classe relacionadas à região unam-se e provoquem o Poder Judiciário, como já o fizeram em outras oportunidades, e busquem reconhecer que a redução do IPI é inconstitucional por diminuir os efeitos gerados pelo modelo ZFM na redução das desigualdades regionais, o que constitui princípio do nosso Estado Democrático de Direito.
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