O Supremo Tribunal Federal possivelmente julgará, a partir do 2º semestre de 2020, o Recurso Extraordinário nº 628.075, gravado com cláusula de repercussão geral (Tema 490), onde se discute a (in)constitucionalidade da glosa de créditos de ICMS aproveitados pelos contribuintes nas aquisições de mercadorias advindas de outros Entes Federados – entenda-se: Estados e Distrito Federal – que outorgam benefícios fiscais, sem respeito ao preceito constitucional de que a concessão de tais benefícios deve ser objeto de prévia deliberação pelos Estados e Distrito Federal (CF/88, art. 155, § 2º, XII, “g”).
Aludido recurso deverá ser julgado pela Máxima Corte juntamente com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.692, proposta em meados de 2006 pelo então Governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, contra o artigo 36, § 3º, da Lei Estadual Paulista nº 6.374/1989, na redação dada pela Lei Estadual Paulista nº 9.359/1996, que restringiu o creditamento de ICMS nas sobreditas operações interestaduais, ao não considerar cobrado o valor do imposto atinente à vantagem econômica oriunda de qualquer benefício fiscal unilateralmente concedido.
Ambos os casos são consequências diretas da guerra fiscal de ICMS no Brasil, entendida como a prática competitiva entre Entes Federados visando atrair contribuintes de outros territórios para o seu, mediante oferta de benefícios fiscais apenas por legislação local, à revelia da aprovação de convênios pelo Conselho Nacional de Política Fazendária.
Essa problemática surgiu após a Constituição Federal de 1988 que, embora tenha estabelecido referida norma para evitar a concessão indiscriminada de benefícios fiscais de ICMS, atribuiu aos Estados e Distrito Federal competência para fixarem suas alíquotas para o imposto, gerando concorrência entre eles no aumento de suas respectivas arrecadações tributárias.
Com efeito, se de um lado, existem Entes Federados gananciosos concedendo benefícios fiscais unilaterais de ICMS somente por suas legislações locais (vigentes e nem sequer questionadas no Judiciário), de outro, surgem Entes Federados prejudicados retaliando os contribuintes com a proibição do creditamento do valor do imposto, correspondente ao proveito econômico obtido com aqueles benefícios, nas suas aquisições interestaduais de mercadorias.
Porém, malgrado aquela conduta dos Entes Federados gananciosos, essa retaliação direta aos contribuintes, perpetrada pelos Entes Federados prejudicados, a título de contragolpe arrecadatório, afigura-se constitucional? Entendemos que não!
Segundo dispõe o art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal de 1988, o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.
Como regra nuclear do ICMS e não podendo ter seu alcance reduzido ou tampouco cassado por normas infraconstitucionais, a não-cumulatividade resulta de um regime constitucional de compensação de créditos e débitos tributários, em cada operação integrante dos processos de produção, distribuição e comercialização de mercadorias, fim do qual restará transferida a carga econômica do imposto ao consumidor final.
Em síntese, a entrada de mercadorias designadas à comercialização ou industrialização cria um crédito a ser subtraído do valor do ICMS devido na operação subsequente com as mesmas mercadorias ou bens desenvolvidos, culminando na não-cumulatividade do imposto.
O objetivo do princípio da não-cumulatividade concentra-se em obstar que o ICMS distorça a formação dos preços e a livre competição das empresas no mercado.
Atuando dessa forma, esse princípio assegura a isonomia tributária e a capacidade contributiva, pois ordena que o ICMS recaia sobre cada um dos contribuintes, observando-lhes seus potenciais econômicos, através de uma regra comportamental invariável que adiciona a carga tributária de jeito proporcional e uniforme ao preço dos bens onerados.
A não-cumulatividade impede que o ICMS irradie efeitos confiscatórios, em virtude da incidência tributária multifásica e sequencial nas etapas do círculo de produção, distribuição e comercialização das mercadorias, pois a tributação, matematicamente, deve ter por base de cálculo o valor adicionado ao preço nas operações tributadas.
Intrínseco do próprio ICMS, o princípio da não-cumulatividade não manifesta uma simples recomendação para o imposto, mas, sim, configura-se uma diretriz imperativa, devendo sempre presenciá-lo em todas as suas etapas.
Assim, em razão do princípio da não-cumulatividade do ICMS, o creditamento dos valores pagos a título do imposto nas operações anteriores para abatimento do valor do imposto devido na operação subsequente é direito constitucional do contribuinte.
Logo, havendo a incidência de ICMS em operação mercantil prévia, válida e efetiva, o contribuinte adquirente da mercadoria tributada pode/deve se creditar do valor cobrado a título do imposto, para abatimento do seu valor devido na operação seguinte, sob pena de afronta ao princípio da não-cumulatividade, tal como ocorre na hipótese em comento.
Isso porque, ao impedirem os contribuintes de se creditarem do valor do imposto nas aquisições interestaduais de mercadorias remetidas de Entes Federados que concederam unilateralmente diversos benefícios fiscais de ICMS, os Entes Federados prejudicados com essa guerra fiscal passaram a violar frontalmente o princípio da não-cumulatividade.
Nessa hipótese, à luz do preceito constitucional da não-cumulatividade, os contribuintes têm o direito à tomada dos créditos de ICMS, cujos valores cobrados nas operações antecedentes – entenda-se: aquisições interestaduais de mercadorias – foram apurados em consonância com as respectivas legislações locais vigentes dos Entes Federados que concederam unilateralmente benefícios fiscais do imposto.
Ora, conforme o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, toda espécie normativa nasce de acordo com a Constituição Federal, de modo que se um Ente Federado discorda de legislação editada por outro, apenas lhe cabe questionar a validade de tal norma, através das vias adequa das, perante o Poder Judiciário.
E a atitude lamentável dos Entes Federados prejudicados com a guerra fiscal, em simplesmente ignorar, deixar de aplicar e considerar inconstitucional as legislações dos Entes Federados gananciosos, sem qualquer decisão judicial nesse sentido, afronta o artigo 1º da Constituição Federal de 1988, uma vez que fere a autonomia e a união indissolúvel dos próprios Entes Federados.
Ademais, porque também configura usurpação de competência do Poder Judiciário (a quem cabe com exclusividade resolver os conflitos entre os Entes Federados), essa atitude ainda viola os artigos 2º (princípio da separação dos poderes independentes e harmônicos entre si) e 102, inciso I, “a” e “f” (jurisdição de competência do Supremo Tribunal Federal), ambos da Constituição Federal de 1988.
Em suma, a prática de suposta inconstitucionalidade por um Ente Federado (concessão unilateral, por sua legislação local, de benefício fiscal de ICMS) não autoriza e nem justifica a execução de ato evidentemente violador da Constituição Federal por outro Ente Federado (punição dos contribuintes mediante glosa de créditos do imposto), certo que eventual inconstitucionalidade de legislação local deve ser questionada, repita-se, pelas vias adequadas, perante o Poder Judiciário, a quem incumbe exclusivamente resolver essa problemática.
Como a multiplicação desenfreada dessas consequências da guerra fiscal de ICMS, em âmbito nacional, nas últimas décadas, gerou uma enxurrada de lides que inundaram o Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão nacional de todos os processos que envolvam essa matéria, até o julgamento dos mencionados leading cases, oportunidade em que se firmará o entendimento obrigatoriamente aplicável em todas as demandas assemelhadas.
Enfim, espera-se que, na resolução dessa problemática, o Supremo Tribunal Federal examine, conclua e decida que a punição direta dos contribuintes pelos Entes Federados prejudicados com a guerra fiscal é medida inconstitucional e, portanto, inadmissível, tendo sempre em mente que inconstitucionalidade não se combate com inconstitucionalidade em nosso Estado Democrático de Direito.
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